Siga Nossas Redes Sociais

Nó Tático

Guarany, Nacional e o povo cruzaltense

Escrito em

Paulo Martins

Por miserável atraso, devido ao glorioso sorteio que os deuses do futebol proporcionaram às oitavas de final da Copa do Brasil de 2022, atrasei uma singela homenagem, através do futebol, a uma pessoa fundamental em minha vida.

No último dia 12 tivemos o dia dos namorados. Lamentavelmente, tocou-me o azar de amar alguém tão distante fisicamente, ainda que minha adorável hóspede no coração. Gabriela de Melo Prochnow, uma gracinha de moça, me arrematou o peito com a velocidade de Dom Lewis Hamilton, agora cidadão brasileiro, pela Fórmula 1: motivo pelo qual nos juntamos.

Muito antes de se pensar em ingleses tornando-se cidadãos de uma terra que não se sabia se pertenceria a Portugal ou à Espanha, um lugar banhado pelo Rio Jacuí, próximo a um afluente da majestosa Bacia do Prata (que será tema em breve), era ponto de encontro entre os ibéricos. “Vamos nos encontrar lá na Cruz Alta”, dizia meu sogro, Seu Willy, contando sobre o monumento de encontro entre os gaúchos brasileiros e argentinos, que disputaram aquela terra no meio-norte do Rio Grande do Sul.

Em janeiro de 2021 fez grande seca e calor no estado gaúcho. O clima é precisamente o oposto de Brasília em relação à chuva: quando chove no Sul, não chove na capital federal. E vice-versa. Hoje, Cruz Alta tem 200 anos. Outrora, fora cotada para ser capital gaúcha. Hoje, sua população sai da cidade pela falta de oportunidade em qualquer área que não seja o agronegócio. Situação de um meio-Brasil. Com o futebol cruzaltense passara mais ou menos a mesma situação: de poderem Guarany e Nacional serem o que são Grêmio e Internacional, ou, pelo menos, Juventude e Caxias, já não jogam absolutamente nada.

Em minha viagem a tão distante terra, não poderia deixar de ver o futebol daquele lugar. Por sorte, em uma hora em que estavam fechando o que parecia um clube de várzea, pedi para entrar, sob a premissa de ser turista. Ali conheci o Taba Índia, casa do já extinto Sport Club Guarany, que foi, um dos interessantes clubes do interior gaúcho até os anos 80, sendo tricampeão da segunda divisão rio-grandense (1954, 1955 e 1987). Hoje, o clube que recebeu Grêmio e Inter nos anos áureos, está de portas fechadas. Tal e qual seu estádio, que recebe não mais que eventos comemorativos ao alugar seu campo outrora sagrado.

Meu sogro conta quando ganhou ingressos para ver o Guarany contra o Ypiranga de Erechim e contra o seu time (e da minha moça, portanto), em 1988. “O Grêmio trouxe jogadores importantes, mas jogou com time misto. Ganhamos por 2-0. Era uma tarde de sábado muito bonita. Aquilo (o Taba Índia) encheu de um jeito impressionante. Onde tinha espaço, as pessoas subiam nos alambrados e nas torres de luz, se empoleiravam, pra assistir o jogo mais de perto. Claro, é o Grêmio, né? Campeão do mundo (cinco anos antes), como não viriam assistir? Quando os times da capital vinham, era casa cheia. Foi um jogo movimentado, e foi bem comentado na cidade depois. Era sempre uma sensação quando tinham esses jogos. Pena que não tem mais hoje.”, relata. Aquele jogo fez parte da campanha do 26° título estadual do tricolor.

No caminho de volta da UniCruz, do norte ao centro da cidade, fui levado para visitar a cancha do Esporte Clube Nacional. Este time que é pura paixão pela poesia futebolística. Explico: imagine a noite de uma quarta-feira no mês de julho, temperaturas próximas a zero grau, um gramado com geada e seu time precisa do resultado para encostar no líder do campeonato, faltando menos de 10 rodada para o fim. É claro que seu time perderia para o Leão da Serra por 1-0, no Estádio Morro dos Ventos Uivantes. Toda a inspiração em pura língua portuguesa não dá a aparência devida do estádio sem cadeiras e situado ao lado de uma prisão. De um time que jogou o Gauchão entre os anos 50 e 60, com título da segunda categoria em 1957. E juro, seus poéticos nomes dão vontade de torcer, como alguns cruzaltenses que aleatoriamente têm sua camisa (ao modelo do Boca Juniors), mas que decerto são gremistas ou colorados.

Vale o detalhe: o futebol gaúcho é tão centrado no extremismo Gre-Nal, que fica difícil mesmo aos tradicionais subir de patamar. Que dirá os menos expressivos. O primeiro campeão gaúcho da história, Guarany de Bagé, foi rebaixado em último na edição de 2022 do Campeonato Gaúcho. E com isso sustento minha tese. Me sobrariam exemplos mais.

Tentei achar algum tesouro de ambos clubes da cidade para trazer para Brasília, mas não consegui. São, hoje, patrimônio guardado por algum torcedor que integra ao rico baú da história do futebol gaúcho. Bem depois de dar ao mundo Érico Veríssimo (exemplo máximo dos saberes e da rica cultura gaúcha), a cidade de Cruz Alta deu ao (meu) mundo a moça do pau de macarrão, que algum de vocês pode ter ouvido ou lido nas transmissões da Esportes Brasília. Ela, que é simplesmente alguém a quem devo minha energia, minha vontade e minha vida, que também ela é. Tão única quanto seu povo, tão perfeita quanto o futebol. Esse tesouro eu tenho e não abro mão. Ela é minha maior preciosidade.

Me lembro, hoje, de quando jogamos futebol no campo do quartel da brigada (Polícia Militar, no restante do país) e ela conseguiu marcar um gol por mérito próprio. Logo em mim, que devo ter sido um dos 20 melhores goleiros da minha cidade, na história. Era algo. Não deveria subestimá-la: ela é inteligente e safa como Renato Gaúcho, forte como Kannemann e Geromel e me protege como Marcelo Grohe fez em Guayaquil, em 2017. Ela faz isso sem ser milagrosa. O amor não é milagroso. Pois ela é real e eu sabia disso o tempo todo, enquanto não tinha ainda pisado o solo cruzaltense, desfrutado da receptividade de sua gente, descoberto minha vida em um lugar envolto pela soja, no infinito interior do Rio Grande do Sul.

P